Jornal ÉME – 13.01.25 – Luanda – Janeiro é reconhecido como o Mês da Cultura em Angola, com destaque especial para o dia 8 de janeiro, data que celebra o marcante discurso proferido em 1979 pelo Saudoso Presidente António Agostinho Neto, durante a posse dos corpos gerentes da União dos Escritores Angolanos. Este discurso tornou-se um símbolo de valorização e promoção da cultura nacional.

Neste ano de 2025, em que Angola celebra os 50 anos da Proclamação da Independência, o Jornal ÉME entrevistou o sociólogo, pesquisador e docente Cláudio João Hebo Kutuila. A entrevista convida à reflexão sobre temas fundamentais para a construção e fortalecimento da identidade angolana, como a promoção, preservação e difusão da Cultura Nacional.

Cláudio Kutuila compartilhou suas valiosas perspectivas sobre a importância do Dia da Cultura Nacional, a necessidade de reforçar a identidade e a unidade nacionais, o pluralismo cultural, a democratização das artes e o papel essencial do ensino na valorização da história de Angola e do MPLA.

Acompanhe, a seguir, esta conversa enriquecedora e inspiradora.

Jornal ÉME:    Porquê que foi instituído e qual a importância do dia 8 de Janeiro – Dia da Cultura Nacional, para os angolanos?

CLÁUDIO KUTUILA: Esta data é hoje celebrada como uma efeméride nacional em homenagem ao célebre discurso  do Saudoso Presidente António Agostinho Neto sobre a Cultura Nacional, proferido em 1979, por ocasião da tomada de posse do corpos gerentes da  da União dos Escritores Angolanos, em Luanda. Um discurso considerado paradigmático sobre a problemática da Cultura, que desde então passou a ser tido como referência incontornável quando se tratam das questões inerentes à promoção da Cultura Nacional.

Para os angolanos, esta data marcou o início da assunção ou institucionalização  de uma consciência cultural tipicamente angolana, ou seja, a afirmação da necessidade de repensarmos  a Cultura Nacional, em relação a sua promoção, conservação e difusão, enquanto pedra basilar para a construção da nossa angolanidade.

Jornal ÉME:    Porque razão o MPLA considera necessário consolidar o sentido de identidade, consciência e unidade  nacional?

CLÁUDIO KUTUILA: O MPLA é, desde os primórdios, o Partido angolano que melhor interpretou a problemática da diversidade étnica e cultural angolana, trazendo no seu “corpus politicus” a expressão dessa diversidade ética e social dos povos. 

Sempre defendeu que, não obstante a existência de vários espaços socioculturais que coabitam no território angolano, Angola é de Cabinda ao Cunene, una e indivisível. Entretanto, precisamos continuar a promover os valores e os traços que solidificam a nossa unidade enquanto Nação, respeitando, obviamente, as especificidades de cada povo, fazendo de Angola um espaço de unidade na diversidade.

Portanto, para o MPLA é fundamental que cada angolano possa rever-se na Nação em que pertence, independentemente da sua origem étnica, credo religioso, proveniência social, raça, ou por qualquer outra forma de estratificação social. 

Por conseguinte, a promoção desse sentimento, que se alicerça em políticas públicas  universais, inclusivas, de equidade distributiva, impulsiona, igualmente, no seio do povo maior consciência colectiva,  identidade e unidade nacioanal. São valores que ao MPLA interessam promover pois são basilares para o sustento do processo de desenvolvimento e progresso social do País, que tanto almeja assegurar.

Jornal ÉME:    Qual é o Papel da Juventude neste processo?

CLÁUDIO KUTUILA: É crença social entre nós que os “jovens são a força motriz” de uma sociedade. Constituem a principal força activa e, consequentemente, os artífices de maior expressão da cultura. 

Os jovens precisam de ser educados culturalmente, precisam de ser socializados em contextos ricos em termos de expressão artística e cultural. 

Lembrando que cultura, no seu lato senso sociológico, compreende toda a parte do ambiente social que resulta da produção humana, desde os artefatos mais simples e, até mesmo rudimentares, aos mais modernos meios tecnológicos que o homem produz enquanto integrante de uma sociedade; compreendendo, por isso, para além dessa dimensão material, uma dimensão imaterial, intangível. Pelo que, a dimensão das crenças, dos valores,  da moral, da espiritualidade, do conhecimento, são também parte integrante desse conceito, que é bastante polissémico.

Partindo desse pilar, percebe-se logo que a cultura é a alma de uma Nação. É ela quem traz a vida e torna vibrante uma sociedade e respectivos grupos integrantes. 

Hoje, é cada vez mais unânime que, a promoção do desenvolvimento de qualquer Nação passa pela capacidade de fazer coabitar os factores da modernidade com os tradicionais. Isso confere autenticidade às pessoas e especificidade ao sistema social.

São os jovens que, por via das diferentes formas de expressão social, devem promover a Cultura Nacional, desde os aspectos mais tradicionais do seu folclore, a endumentária, a gastronomia, os hábitos e costumes do povo que nos foi legado pelos nossos antepassados, às mais diversas formas de expressão da cultura popular urbana moderna.

São os jovens que se devem empenhar na pesquisa da nossa ancestralidade, conhecer a nossa história, os nossoss lugares e sítios históricos, as personagens e feitos dos que nos antecederam, para os poder promover e divulgar enquanto referencial para as novas gerações.

Jornal ÉME:    Como promover o pluralismo cultural e, quais valores universais devem estar presentes na cultura contemporânea?

CLÁUDIO KUTUILA: Uma das formas, que julgo ser eficiente de promoção do pluralismo cultural, é dando vez e voz aos diferentes subgrupos culturais que constituem o nosso mosaico cultural, através da promoção da sua representatividade política, social e cultural. 

Ou seja, é fundamental que não apenas as maiorias, mas as minorias étnicas e sociais sejam também representadas em cargos políticos e não só, que o seu folclore possa ter espaço na mídea social, o seu imaginário cultural seja parte da base de construção do imaginário colectivo ou comum dos angolanos, em fim, todos os povos de angola possam merecer igual prestígio, promoção e valorização social.

Para tal, o nosso conteúdo local, quer ao nível dos curriculos escolares, quer ao nível da política cultural deve ser expressão daquilo que são os povos de Angola, de Cabinda ao Cunene.

que precisamos preservar vários princípios e valores, dos quais apraz-me destacar os seguintes: A sacralidade da família e do domicílio, a Paz e o diálogo, a promoção das línguas nacionais, a valorização das nossas indumentárias sociais tradicionais, o respeito pelos locais sagrados, monumentos e sítios, o respeito aos nossos antepassados e figuras relevantes da nossa história, a solidariedade entre os povos, a empatia social, a preservação do bem-comum, a primazia ao estudo e ao trabalho, o empreendedorismo, etc.

Jornal ÉME:    O que é a Democratização cultural que o MPLA  defende  e que grupos sociais devem ser  alvo de acção cultural?

CLÁUDIO KUTUILA: A noção de Democratização cultural é bastante polissémica, a visão que o MPLA defende está muito assente na necessidade da promoção do acesso aos espaços culturais, tais como museus, cinemas, teatros, recintos desportivos, estúdios, academias, etc; ao direito à expressão cultural e artística individual e ou colectiva, à representatividade cultural e étnica dos povos, promoção das formas de erudição cultural e outras que completam a integridade da vida cultural das pessoas e respectivas comunidades.

Essa visão defende que a materialização desse ideal passa pela promoção de políticas públicas que permeiem o aumento de infraestruturas culturais, formação dos operadores de suporte ao processo cultural, a formação artística, promoção do génio criador angolano e construção e difusão de uma matriz cultural angolana, assente nos valores da angolanidade.

Neste sentido devem ser alvo dessa acção acultural, todos os angolanos, independentemente da idade e demais população residente, com particular enfoque as gerações mais novas.

A Juventude é, por conseguinte, a franja que mais precisa tomar contacto com as diferentes formas de conteúdo e experssão cultural, visando a sua aprendizagem e conservação. A Educação escolar e a Mídea social devem, por isso,  ser aliados privilegiados, através da indexação de um conteúdo cultural  diverso aos currículos escolares, e à grelha programática que difundem, respectivamente.

Jornal ÉME:    Que tipos de eventos e actividades devem ser promovidos para  estimular os indivíduos  a se  tornarem sujeitos activos  do desenvolvimento?

CLÁUDIO KUTUILA: Eu penso que a equação já existe e basta apenas seguir os bons exemplos. O primeiro exercício a fazer é apostar na promoção da formação de qualidade e integral do homem. A Educação deve contemplar uma dimensão cognoscitiva, estética, moral, cultural e, eventualmente outras. 

Deve ser um fenómeno  holístico e um recurso heurístico, ou seja ela deve permitir o crescimento integral do ser humano e actuar como ferramenta para busca de soluções, do imaginário para o plano concreto.

Entendemos que se as nossas instituições de ensino e respectivos parceiros sociais colocarem no centro da sua prática social e acção formadora, a necessidade da promoção cultural, sob diferentes maneiras, quer seja através da promoção de concursos de leitura, de debates e oratória, olimpíadas de matemáticas, artísticas, concursos de músicas, danças, expressão cultural dos povos nacionais, intercâmbio cultural, excursões, visitas, etc, poderão contribuir para tornar os seus formandos em agentes mais activos no processo de desenvolvimento cultural. 

Claro está que este processo deve ser sempre acompanhado pela valorização do homem-formador, a criação de condições materiais e uma eficiente gestão dos activos humanos.

Jornal ÉME:    No âmbito da criação e produção artística, qual é a relação entre  a promoção do turismo e a cultura angolana?

CLÁUDIO KUTUILA: Entendo que promover o turismo é uma das formas de promoção da Cultura. O conteúdo turístico envolve forte carga cultural, ou seja, o que vamos apresentar a quem nos visita não é mais do que aquilo que somos, enquanto povo. A nossa forma de ser e estar mais típica, as nossas endumentárias, a nossa gastronomia, os nossos monumentos e sítios, a nossa história, as nossas paisagens e significações, etc, etc. 

Vale ainda dizer que, o turismo tem dimensões específicas, desde o turismo natural ou paisagístico, o turismo histórico e cultural, o turismo desportivo, etc. Em qualquer um dos casos abre-se a oportunidade de promoção da cultura nacional, havendo nestes termos relação intrínseca entre estes elementos.

Trata-se de uma relação que permite a elevação do prestígio internacional do País e, em consequência, abre-se o País para mais visitantes, estimula-se a economia, a empregabilidade e o progresso social. 

Jornal ÉME:    Qual é a importância de preservar os arquivos históricos  de Angola e do MPLA?

CLÁUDIO KUTUILA: Seja qual for a finalidade de um Arquivo, eles são fundamentais para guardar e conservar os documentos, de modo a serem utilizados para atender a interesses, quer administrativos, pessoais e ou históricos.

No nosso caso, é importante considerar que, a história do MPLA confunde-se com parte significativa da história de Angola, sobretudo a partir do início da segunda metade do século XX, considerando o facto de os protagonistas da nossa acção histórica serem, fundamentalmente, os percusores e pais-fundadores do edifício que é hoje o MPLA.

Neste sentido, conhecer a história real de Angola é quase impossível sem considerar a história do MPLA. Logo, a preservação dos arquivos do MPLA e, eventualmente de outros movimentos políticos da fase embrionária do nosso nacionalismo, é fundamental, pois neles estão contidos fragmentos essenciais da história de Angola.

Jornal ÉME:    Por que é importante criar infraestruturas  para as artes? Temos exemplos?

CLÁUDIO KUTUILA: As artes são uma das formas mais eloquentes de expressão cultural. Entendo serem expressões artísticas, entre outras, a música, o teatro e a representação, as artes plásticas, o artesato, a tecilagem, a olaria, a cerâmica, a dança, etc, etc, e incluo com naturalidade neste bojo as diferentes formas de expressão desportiva e atlética.

Se assim considerarmos, fica evidente que as infraestruturas ocupam um lugar central para a existência dessas formas de expressão da vida humana. As infraestruturas não apenas servem a função de apresentação pública do produto artístico, mas permitem a ocasião da sua promoção, criação, insentivo à prática, aprimoramento e desenvolvimento.

Existem bons exemplos em relação a construção de infraesturas para a promoção artística em Angola, embora o caminho ainda seja bastante longo a percorrer neste sentido. 

Ressaltam mais a vista as infraestrututas para as artes desportivas e de arte de rua, já que estas tendem a estar integradas a outros projectos.

Um outro exemplo neste sentido são os espaços museológicos, as galerias existentes, os espaços e salas para teatros e outras actividades de exposição nas diferentes províncias. Um bom exemplo, que a mim satisfez foi a notícia recente anunciada por Sua Excelencia Ministro da Cultura Nacional, Dr. Filipe Zau, que os Cines Alfa 1 e 2 em breve reabrirão as portas, um eloquente exemplo que se junta a outras iniciativas em curso.

Jornal ÉME:    Que recomendações deixarias  para que o ensino em Angola contribua para o conhecimento da história de Angola e do MPLA?

CLÁUDIO KUTUILA: Particularmente, defendo uma reforma nalgumas disciplinas específicas e a introdução de outras, que deverão ajudar a colmatar o défice que sentimos em relação ao conhecimento sobre quem somos enquanto povo, qual é a nossa Matriz cultural, a promoção de maior empatia social e maior sentido patriótico.

A crise moral que se vive, sobretudo ao nível do tratamento ao próximo, quer enquanto utente de serviços públicos ou mesmo privados, quer na via pública, é, antes de mais, uma crise que deriva da pobreza educacional, da falência das famílias e da letargia e ou descaso de algumas instituições.

É fundamental ensinar às pessoas quem sempre fomos, e assegurar mecanismos para que o que somos seja um valor a preservar. Evitando a promoção e difusão mediática de gestos, práticas e ou conteúdos que constituam  contravalores ao ideal que se quer preservar.

As escolas precisam ser espaços de debate aprofundado, valorizar esta acção nos processos formativos e sumativos. Sair do domínio das teorias e ir ao encontro dos protagonistas ou dos remanescentes, que estiveram na base de todo processo histórico.

Valorizar a pesquisa histórica e sociológica através do apoio financeiro e técnico. 

O MPLA precisa incentivar a parceria com a academia e demais actores relevantes da sociedade civil, com vista ao aprofundamento do conhecimento da sua história no seio da juventude, sobretudo. Apostar na produção audeovisual, cinematográfica, etc, como forma de expandir a informação aos diferents públicos.

Jornal ÉME:    Qual é a importância que tem o convívio entre os angolanos, após longos anos de conflito armado?

CLÁUDIO KUTUILA: O Conflito armado que Angola viveu, sobretudo  entre 1975 a 2002, para além de dilacerar vidas humanas, contribui para o aumento da desconfiança mútua, do ressentimento, do ódio, e, consequentemente, para exclusão estrutural. Desde o alcance da Paz e o início do processo de reconciliação nacional o País marcou passos significativos no sentido de superar esses traumas da guerra civil.

Um dos factores que tem contribuído favoravelmente para ultrapassar esse sentimento dissociativo é, inevitavelmente, o convívio das populações no mesmo espaço social. Esse convívio permeia outras formas de associação que ajudam a ultrapassar o passivo histórico. O convívio permite, por exemplo, casamentos, parcerias económicas e sociais, partilha, entre outras formas de cooperação que promovem associação ao sistema de relações interpessoais.

O apelo das autoridades ao perdão, à reconciliação e a inclusão social das partes outrora contendoras tem sido, igualmente, um farol para as populações no sentido de ver no próximo um irmão, um compatriota, com quem devemos cooperar para o bem comum, que é a realização da Mãe-Pátria, Angola. Apenas o convívio salutar permite essa proeza.

Muito Obrigado pela oportunidade!